Se fosse vivo, faria hoje 99 anos. Faleceu quando eu tinha 10. Já passaram 29 anos. Mas lembro-me dele todos os dias, como se ainda estivesse cá. Por qualquer motivo que não sei explicar, sinto, desde que me lembro, que o avô João Cardoso, pai da minha mãe, continua a acompanhar-me, a olhar por mim, por nós, lá de cima, onde ele está.
O avô Cardoso trabalhava em Beirolas, uma instalação militar, mas manteve-se sempre nos escritórios, nunca foi chamado a combater. Sempre foi extremamente protector com a sua mulher, a minha avó Deolinda, que tinha epilepsia desde que nasceu. E tornou-se também com a minha mãe e connosco, as netas.
Sempre tive a sensação que ele me via como sou - e não como gostariam que eu fosse. Sem expectativas. Via-me e ouvia-me. Nunca admitiu que o tratasse por "você" ou "o avô", como nos ensinavam a fazer com os mais velhos ou com as pessoas que não conhecemos, por uma questão de educação. Dizia-me:
- Sou teu avô, tratas-me por tu.
Lembro-me da sensação de segurança de lhe dar a mão, quando ia buscar-me à escola. De me sentar ao colo dele, com brincadeiras e a fazer-lhe cócegas. Adorava filmes de cowboys, mas enervava-se com a emoção. Às vezes, a política também o deixava irritado - sobretudo, quando era mais à direita. Gostava da comida picante que o amigo indiano, dono da papelaria da esquina, lhe trazia. Mas não podia abusar. Quando se chateava com alguém lá de casa, ia para o carro - um Toyota Corolla azul - provavelmente para evitar qualquer tipo de confronto.
Quando eu chegava da escola, perguntava-me sempre como tinha sido o meu dia, como tinham corrido as aulas, se eu já tinha namorado. Tínhamos piadas só nossas. Creio que, por altura da guerra do Golfo, chego com uma anedota mais malandreca e estava com vergonha de contar. Perante a insistência dele, lá partilhei. Consistia em dizer, várias vezes seguidas e muito depressa, as palavras "Iraque Unita" (experimentem e vão perceber). O meu avô riu-se a bom rir e disse: "Vai lá contar à avó". Eu vou à cozinha, onde a minha avó estava na maior parte do tempo, conto, mas regresso desiludida:
- Avô, a avó não percebeu a anedota...
- Não? Deixa lá, fica uma piada só nossa.
O meu avô foi bombeiro voluntário. Tal como o meu "padrinho" Daniel, vizinho do lado dos meus avós (e padrinho leva aspas porque, na realidade, era o pai do meu padrinho de baptismo, que herdou o título por o filho ser, na altura, muito jovem). De cada vez que toca uma sirene, lembro-me dele. Acumulou uma coleção enorme de medalhas de mérito que nós guardamos religiosamente. Um dia, vários anos depois dele ter falecido, fui fazer uma aula de Educação Física às instalações dos Bombeiros Voluntários de Moscavide e, com a curiosidade típica de uma criança, entro numa sala, cuja porta não estava fechada. Qual não é o meu espanto quando vejo, numa parede, uma série de fotografias emolduradas, entre as quais a do meu avô, em jeito de homenagem a todos os Bombeiros Voluntários que já tinham falecido. Guardo até hoje a emoção que senti. E o orgulho no meu avô.
O mês de Agosto era sempre passado na aldeia onde os meus avós nasceram: no distrito da Beira Baixa, perto de Vila Velha de Ródão e a cerca de 40 quilómetros de Castelo Branco. O avô Cardoso tinha uma espingarda e uma pistola - provavelmente, lembranças dos tempos de trabalho em Beirolas. Um dia, estava a disparar a espingarda para o ar, e - talvez por curiosidade minha - quis experimentar também. Lembro-me do "coice" que deu ao disparar e do ruído estridente. Até hoje tenho um enorme respeito e fascínio por armas de fogo. E ainda quero aprender a disparar (atenção que não sou defensora nem gosto de caça; quero experimentar apenas contra alvos e com responsabilidade - sempre!). Quanto à pistola, tinha uma certa elegância, quase feminina. Estão ambas desactivadas e guardadas em segurança, como parte de um espólio familiar.
Outro dia, recordo-me - já não sei se de memória ou imaginação - de irmos passear para o meio do mato, na aldeia. E, a dada altura, o meu avô surge, perto de mim, a falar baixo e, visivelmente apreensivo. Disse-me que tínhamos de sair dali rápido, mas sem fazer barulho. Saí, contra a vontade. Só mais tarde ele me disse que tinha visto um javali.
Lembro-me perfeitamente do dia em que faleceu. Tinha problemas de coração, precisava de ser operado, mas não quis correr o risco. Não resistiu ao terceiro ataque cardíaco. Acordei com o telefone, ouvi a minha mãe chorar. Creio que, meio confusa, voltei a adormecer. De manhã, contaram-me o que tinha sucedido. Naquele momento, não consegui assimilar. Íamos de férias, para o Algarve, nesse dia. Já não fomos, claro. Recordo-me da preocupação da minha mãe em saber como dar a triste notícia à minha avó. Tenho a imagem de estar sentada, na sala de jantar de casa dos meus avós, a ler livros de empreitada, muito encolhida, num canto, para não incomodar, para ninguém dar pela minha presença. Era o meu escape. Alguns dias depois, sonhei que ele estava vivo. E foi um sonho tão real que, quando acordei, fui à procura dele. Já não posso jurar, mas tenho ideia de ter perguntado à minha mãe por ele. Só aí percebi que não ia vê-lo mais.
Como recordação, tenho algumas fotografias - poucas - e um pin daqueles de colocar na roupa, que era dele. Usei-o em algumas ocasiões importantes, às quais eu sei que o meu avô gostaria de ter assistido. Talvez tenha visto. Talvez veja. Talvez ouça. O que é certo é que ainda falo muito com ele. E uma das últimas vezes, foi quando fiquei infectada com Covid-19, grávida de 17 semanas, internada, nos cuidados intensivos. Pedi-lhe ajuda para mim e para a bebé. E, tal como ele fez comigo, também prometi. O meu avô Cardoso prometeu, que se eu nascesse bem e com saúde, ia a Fátima pôr uma vela do meu tamanho. E cumpriu. Foi a única vez que fui a Fátima. E vou lá voltar. Tal como ele, prometi e vou cumprir.
Conto todas estas historias de memória e não posso jurar que os factos sejam absolutamente fidedignos, já toldados pela passagem do tempo ou misturados com a minha imaginação de criança da altura. Mas estas são as recordações que tenho dele. E são do coração <3
Comments